26 de junho de 2009

Paus e pedras quebram tudo pela frente, mas palavras não machucam a gente.

“Solilóquios em ziguezague”, tropecei nessa expressão lendo J.-A. Miller e gostei, talvez o que escreva agora seja isso, alguns fragmentos de pensamentos bebuns que saem costurando as ruas da minha consciência, logo, me tiram o sono. O diabo continua solto por essa bandas e eu que não sou boba nem nada aproveito para cortejá-lo.

Passei os últimos meses ouvindo enunciados distraindo os ouvidos para a enunciação. Maldito pathos que mina todos os sentidos para o principal, as enunciações! Sim, elas, as enunciações! Explicação: o enunciado pode ser verdadeiro ou falso, já a enunciação desvela a posição subjetiva do sujeito. Difícil ouvir a enunciação, ainda mais quando se está na ciranda do pathos. Em plena associação de palavras lançadas com medo e desejo, ouvir certas palavras conforta, quando não, alimenta ilusões. Algumas agem como um sossega-leão que apaga em questão de segundos o rastro das incertezas que inquietam o coração. Parece que um anestesista as injetou ouvido adentro, nove...oit...apagou. Outras agem como um alucinógeno, já outras o efeito colateral é a excitação. Parênteses: é aí que concordo com a Martha Medeiros (2007) ao falar da “Atlântida” feminina, “não temos um ponto G, mas dois, um em cada lateral da cabeça, e não é preciso tirar nossa roupa para nos deixar em êxtase” (p. 9).

Voltando aos enunciados, como tomá-los como falsos? Quando alguém fala algo se subentende que se diz “falo a verdade”, até mesmo quando diz “eu minto”; como afirma Lacan (1969-70) no Seminário 17: Avesso da Psicanálise “a asserção se anuncia como verdade” (p. 62). Então, como localizar quem diz? Dada as circunstâncias, o timbre de voz, o horário, toda uma cadeia significante anterior. Começo a pensar na verdade do sujeito, verdade que está fora da lógica proposicional e só pode ser localizada no campo onde se enuncia (Lacan, 1969-70). Que verdade é essa? Uma marmelada (doce sugestivo) pra quem responder. Dou-lhe 1, 2, 3...Alguém disse desejo?!

E as questões atravessam as horas. Como localizar o sujeito em seus ditos quando se está “pathosado”? Como ser sensível as modalizações do dito quando o sujeito está, literalmente, surdo? Modalizações infinitas, sutis nuanças, no tom de voz, numa vírgula, no silêncio. Será que na paixão estamos fadados ao mal-entendido?

Enunciados, palavras vazias, ouvi-los como verdadeiros, de pessoas significantes, em momentos que correm contra o tempo: “fale agora, ou cale-se para sempre”, eis a armadilha, o calabouço das idealizações.

Último fragmento: no (pôr) fim, assim são as coisas (in)acabadas, acabam por dentro, num processo de despedaçamento das entranhas psíquicas. Irrisórias ilusões, dignas de escárnio, (in)significantes, significam por dentro, e como significam. É na escuridão que os clarões inconscientes me cegam.

p.s.: o título do post está na capa do livro Cantiga de Ninar de Chuck Palahniuk. E discordo caro autor, as palavras machucam e quebram tudo pela frente. O mesmo vale para o silêncio.

6 de junho de 2009

A instância da letra numa parede ou...ODiabom!


'Better the devil you know than the devil you don't'

Deus e o Diabo habitam Maceió. O Diabo e Deus disputam palmo a palmo as paredes dessa cidade, andam de mão em mão. Para aqueles cujo olhar passou despercebido, basta caminhar por aí; olhem novamente. O fato é que vejo Deus e o Diabo todos os dias; eles não me saem da cabeça: estão no caminho para casa e em pichações nos muros da cidade, estão escritos nesses grandes cadernos chamados 'paredes'.

Mas, calma! Isto aqui não se trata de mais um episódio de Constantine. A questão é que não sei se isso acontece em outras cidades ou se essa é uma disputa exclusivamente alagoana; porém, há algum tempo venho percebendo essas pichações em diferentes bairros da nossa cidade e logo me veio a pergunta: porque se precisa escrever o nome de Deus ou do Diabo numa parede? Seriam eles esse Outro que precisa se fazer representar? O que acontece nessa cidade para que essa espécie de dito precise se fazer escrito, assim, tão visivelmente?

Onde quero chegar com tudo isso? Como vocês vêem, tomei emprestado como título para esse post um famoso texto de Lacan intitulado 'A instância da letra no inconsciente'. Está lá nos 'Escritos'. Sobre ele operei uma pequena substituição: ao invés do inconsciente, a parede (por favor, ignorem óbvio dessa substituição). Não sei bem do que Lacan trata nesse texto, mas seu título sempre me fez imaginar muitas coisas...

Como muitos devem saber, as palavras, as letras, os nomes, enfim, os significantes possuem um peso significativo num tratamento psicanalítico. Ou talvez seja que ao experimentar uma análise descobrimos (se já não o havíamos feito antes) o peso que as palavras tem sobre nosso destino. Antes de nascermos já somos falados pela boca de outros, já existimos nas palavras, no discurso do outro: quer seja por meio de um nome ("Vais te chamar...Vitória", por exemplo), de um desejo ou de um lugar previamente construído, essa espécie de ninho de dizeres que nos aguarda antes de nosso nascimento. Eis aí os elementos fundamentais para a constituição do sujeito, este que nada mais é que o suposto; isto que a fala supõe.

Voltando ao nosso caderno gigante - as paredes -, na foto acima vocês vêem um Diabo transformado. Achei notável a habiliade da pessoa que se deu o trabalho de ir até a Fernandes Lima e ali, onde havia o diabo, pichou um 'm' e um sinal de exclamação, transformando-o por completo. Com uma letra, então, passou-se do Diabo para o Diabom! Essa pessoa certamente entende do que se trata numa análise, ou do que se trata uma vida, e por isso lhe dedico esse post! O diabom, portanto, está a uma letra de distância. O Diabo também. E não é exatamente assim com nosso inconsciente, estruturado como uma linguagem?

Parte 2

Deus existe? Não sei. Mas dele se fala, e do Diabo também; logos, ambos devem existir. Para iniciar minha conclusão, retomo a epígrafe desse post (se é que um post se presta a tal recurso estilístico!): Better the devil you know than the devil you don't. Além desta, existem muitas outras expressões com o Diabo na língua inglesa, mas que por hora iremos deixar de lado, como por exemplo: speaking of the devil...ou...between the devil and the deep blue see. Retomando a primeira, temos que "é melhor o diabo que conhecemos, do que o diabo que desconhecemos". Penso que se trata de algo semelhante na travessia do fantasma e no dia-a-dia dos nossos tão amados sintomas. Aqui lembro meu orientador, em uma de suas milhares de frases que me fisgaram: "o sintoma é a maneira como cada um gosta do seu inconsciente".

Ao tratar da transferência no seu texto 'Observações sobre o amor transferencial', Freud escreveu uma das mais belas metáforas que já li sobre o assunto. Nele, Freud diz: "Instigar a paciente a suprimir, renunciar ou sublimar seus instintos, no momento em que ela admitiu sua transferência erótica, seria, não uma maneira analítica de lidar com eles, mas uma maneira insensata. Seria exatamente como se, após invocar um espírito dos infernos, mediante astutos encantamentos, devêssemos mandá-lo de volta para baixo, sem lhe haver feito uma única pergunta." Esta pergunta, Lacan mais tarde a retoma com seu 'Che vuoi?', ou melhor dizendo: "que queres"? E de onde Lacan tirou essa? De um conto italiano escrito por Jacques Cazzote, intitulado: 'O Diabo amoroso'. Sinceramente, eu não consegueria pensar num título melhor para um livro qualquer que fosse, especialmente um que trate do desejo. Segundo Peter Souza Leite, tanto para Freud quanto para Lacan, o Diabo aparece como o próprio porta-voz do desejo.

Logo (urgente mesmo!), é preciso fazer falar esse Diabo que habita a todos nós, e não apenas as paredes da cidade, causando tanto incomodo ao ponto de que alguém se prontifique a lhe acrescentar uma letra; alguém este que algo quis fazer com esse Diabo que lhe incomoda - como eu nesse momento. Não sei se o mesmo aconteceria com o nome de Deus escrito nos muros. Pelo que vi, acho que não.

Àqueles que quiserem ver, o Diabom! os aguarda na parede da passarela do CEAGB, está lá, como na foto. Tire o dia e visite o Diabo. Se o Diabo incomodar, lembre-se que O Diabom! está a uma letra de distância.