28 de janeiro de 2010

Útero

Depois se virou, aproximou-se de Pedro Cantos e fez aquilo para que tinha vivido. Encolheu-se contra as costas dele, puxou os joelhos para perto do peito, juntou os pés até sentir as pernas perfeitamente alinhadas, as duas coxas suavemente unidas, os joelhos como duas xícaras em equilíbrio uma sobre a outra, os tornozelos separados por um vão: apertou um pouco os ombros e fez as mãos escorregarem, juntas para o meio das pernas. Olhou-se. Viu uma velha menina. Sorriu. Concha e animal.

Então pensou que, por mais incompreensível que seja a vida, provavelmente nós a cruzamos com o único desejo de retornar ao inferno que nos gerou, e de viver ali, ao lado de quem, uma vez, nos salvou daquele inferno. Tentou pensar de onde vinha aquela absurda fidelidade ao horror, mas descobriu não ter resposta. Compreendia somente que nada é mais forte do que o instinto de voltar para lá onde nos despedaçaram, e de repetir aquele instante por anos. Pensamos apenas que quem nos salvou uma vez pode depois nos salvar para sempre. Num longo inferno idêntico àquele de onde viemos. Mas inesperadamente clemente. E sem sangue. (p. 79-80)
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Sem sangue – Alessandro Baricco

27 de janeiro de 2010

"Frases finais para O Livro da Memória"

De uma carta de Nadiejda Mandelstam para Óssip Mandelstam, datada de 22/10/38, e nunca enviada.

Não tenho palavras, meu querido, para escrever esta carta [...]. Eu a escrevo no vazio. Talvez você volte e não me encontre aqui. Então isto será tudo o que terá restado para você se lembrar de mim [...]. A vida pode durar muito. Como é difícil e demorado para cada um de nós morrer sozinho. Será mesmo este o nosso destino, nós que somos inseparáveis? Filhotinhos de cachorro e crianças, será que merecemos isto? Você merece isto, meu anjo? Tudo continua como antes. Não sei de nada. Mas sei de tudo - todos os dias e todas as horas da sua vida se mostram claros e nítidos para mim como em um delírio - em meu último sonho, eu comprava comida para você no restaurante de um hotel vagabundo. As pessoas a meu lado eram totalmente desconhecidas. Depois que comprei a comida, me dei conta de que não sabia para onde levá-la, porque não sei onde você está [...]. Quando acordei, disse para Chura: 'Osia morreu'. Eu não sei se você ainda está vivo, mas, desde a época daquele sonho, perdi sua pista. Não sei onde você está. Será que vai me ouvir? Sabe o quanto amo você? Eu nunca conseguirei dizer o quanto amo você. Não consigo nem mesmo agora. Falo para você, só para você. Você está comigo sempre, e eu que fui tão turbulenta e furiosa e que nunca aprendi a chorar como todo mundo - agora choro e choro sem parar [...]. Sou eu: Nádia. Onde está você? (p. 191).
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A invenção da solidão - Paul Auster
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p.s.: não canso desse livro.
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. na vitrola: victoria petrosillo - la bonne personne .