10 de julho de 2015

Jogo Maldoso



Abro o Youtube e escrevo “Wicked Game Chris Isaak”. Entre as opções, clico em “HD Wicked Game - Chris Isaak [Official Video]”, dou play. Nos quatro minutos seguintes viajo aos confins do universo – passagem de ida, apenas, amigo. O retorno a este mundo não é garantido. 


Na canção, um homem diz que não quer se apaixonar...ou diz que quer? É possível definir isso ao ouvi-lo cantar o refrão? Que diferença faria se ele dissesse que quer... ou se dissesse que não quer? Afinal, o que diz esse homem? Sutilezas diabólicas a serem exploradas pelo pensamento humano. Procuro a letra no Google, uma versão online diz que ele quer se apaixonar, outra versão diz que ele não quer. Entre o bem-me-quer-mal-me-quer, fico com a segunda referência, do Lyrics007, me pareceu mais confiável; também me lembro de ouvir um amigo comentar com outro colega, numa festa há alguns anos atrás, que se surpreendeu ao procurar a letra da música e ter visto que ele dizia que não quer se apaixonar; como se dissesse ao outro, surpreso:  veja, cara, não é uma letra de amor! (Ou será?);  O cara está dizendo que não quer se apaixonar, ele tá se defendendo disso! 

Como, Chris Isaak, você conseguiu este feito? Como pôde construir um enigma tão perene que hoje, passadas mais de duas décadas, continua a interrogar aqueles que, inadvertidamente, o escutam, como um canto de sereias a seduzir e assombrar marinheiros desavisados?


Bem, então esse tal homem não quer(ia) se apaixonar? 
Penso comigo: “Imagina se quisesse; a bagaceira que seria essa música”. Reflito sobre como, no pico da paixão, os homens, indefesos, sem ter onde se esconder, sem saber sequer o que fazer consigo, apelam veementemente à negação, ou recorrem à dúvida. Quanto mais apaixonados, mais se perguntam, como Bob Marley, “Is this love, is this love that I am feeling?”. E tanto mais amam quanto mais se questionam, se será amor ou não, se estão apaixonados ou não, defendendo-se disso como se encurralados por um demônio que lhes enfiou um revólver na boca, com o dedo no gatilho prestes a ser disparado. 




Todavia, láctea, sou tragado de volta a realidade por um corte abrupto. Ao final de Wicked Game, o modo de execução de vídeos do Youtube lança automaticamente a canção seguinte (estratégia um tanto duvidosa para manter seus clientes online, no fluxo da audiência). E eis a lástima, estamos falando aqui de frações de segundos – as coisas mais importantes acontecem em frações de segundo. A próxima canção entra, furtivamente, e começa a rodar: James Blunt, “Beautiful”. Qual não é o meu baque... o abismo, o chão duro, áspero. Será possível, Youtube? Despenco em queda livre do alto da minha fantasia e sequer me ofereceram um paraquedas. Estremeço só de imaginar que esse Outro artificial põe em nível de equivalência, – na sequência de “Wicked Game” –, “Beautiful”, de James Blunt. Como se fossem objetos de igual valor, intercambiáveis, objetos que fazem parte da mesma série. Como se depois de ouvir Wicked Game alguém tivesse necessidade de perguntar as horas, ou onde está, quem se é. Como se depois de se questionar sobre o canto das sereias – única questão realmente séria nesta vida –, fossemos transportados ao interior de um ônibus em que algum vendedor ambulante lhe pergunta se você gostaria de adquirir suas deliciosas pastilhas pagando apenas R$ 1,00.


Respiro...
Penso em escrever uma carta ao Youtube, publicar uma pequena nota de repúdio. Ao final, desisto. Não saberia a quem endereçá-la. Penso, por fim, que ninguém se importa seriamente com a melhoria do critério que define qual próxima canção deveria ser executada na sequência de uma música que você escolheu anteriormente. É uma estrutura cega. Resigno-me a pensar que não há tanto saber no Outro quanto o suponho nesse mundo randomizado. O aleatório é apenas o aleatório, não é Deus tirando onda da sua cara. Decido não ficar chateado com o Youtube e aperto o botão de retorno, para os mistérios de Wicked Game.