28 de dezembro de 2009

Aos ex- e às ex-

Por um vida breve e passageira, como os viadutos de Maceió que saem de nenhum lugar e nos levam a lugar nenhum. Habitar cuidadosamente as fronteiras, os não-lugares, de preferência um lugar que eu não possa chamar de meu. 'Eu'...pra que aparece no texto? Afinal, o que é isso, "eu"? O eu é algo que dorme, geralmente à noite. Ainda bem. Acho que para isso inventaram as bebidas, comprimidos, música e paixões. Repetir para lembrar, para ainda assim não querer ser lembrado e ao mesmo tempo, não suportar ser esquecido. Pensar naquilo que podemos construir no lugar de ex-. Sonhos nessa vida: me tornar um ex-fumante ou ex-alcoólatra; alguém em abstinência do uso de certas substâncias. Poder simplesmente engavetar um arquivo, saber que está lá, mas que não é mais necessário. Como uma neurose, e os seus restos; seus estragos.

Me lembro sempre de como meu pai, ex-policial que tem uma ex-esposa e três filhos, falava sobre os tiros de 12, a maneira como aquele cartucho iria se fragmentar e se espalhar pelo corpo, e sobre como esse tiro era pior que o de um 38. Mas este último pensamento, na verdade, é meu. Por que pensar nisso quando penso no pai? O pai na nossa vida é um tiro de 12 ou de 38? Ou isso nada mais é que a sombra do Outro? Escrever para poder esquecer que há um eu que tenta escrever um texto. Escrever para assim me livrar da consciência, da lembrança que no mundo sou um eu que coleciona imagens de tudo que já foi e que está sendo. O melhor dos textos é sempre aquele em que não nos lembramos como seus supostos autores. Quando falamos de um texto escrito e dizemos: "Poxa, esse texto eu simplesmente sentei na cadeira e puft!, saiu." Incrível, não?

Ser ex- nos permite construir algo para além do que passou, inscrevendo o que não mais é: somos todos, em alguma medida, ex-algumacoisa. Ex-moradores, ex-namorados, ex-prefeitos, ex-esposas, ex-alunos, ex-viciados. Marcamos o que não é mais que nos constitui e abrimos a porta para o desconhecido. Porém, certas marcas acompanham a vida como um selo: não há ex-filhos, ex-pais, ex-brasileiros, ex-atravessados por uma história ou um passado. Então penso em como será a vida de um amnésico. Talvez se sintam mais leves, mais livres, por esquecerem qualquer tipo de ordem a qual estejam sujeitos. Eis aí o tiro de 12: o Desejo. Isso que faz com que nunca possamos ser ex-desejantes; posição concebida apenas aos mortos. Desejo...de sonhar, escrever, de esquecer, de nada desejar. Às vezes, desejo de lembrar, pois, sim, algumas coisas valem a pena ser revistas, para serem lidas com outras lentes, numa outra posição, quiçá, menos aterrorizante.

Buscar um lugar no qual aquilo que deseja ser lembrado, pode, enfim, retornar; sem tantas vírgulas e pontos pelo caminho, sem borrões ou páginas coladas, se escrevendo num texto corrido, fluente, ao qual nos entregamos às suas letras. Letras que se tornam, enfim, suportáveis. Podemos, então, sustentá-las com um corpo, num corpo, sem que doam como antes. De tudo aquilo que foi e pode continuar sendo, como ex-, como fala ou escrita, que já saiu da boca ou das mãos, já passou.

21 de novembro de 2009

...ninguém a entende.

A maioria dos filmes que assisti me emocionou. Entre um leque de emoções é difícil lembrar de todos os filmes e a emoção ou sensação correspondente. Verbalização ajuda a trazer à consciência essas sensações, emoções, ideias. Escrevo isso porque estava tentando lembrar quais filmes me fizeram chorar. Pelo que lembro foram poucos, O escafandro e a borboleta, Ensinando a viver, Sobre meninos e lobos, A vida secreta das palavras, O pianista ... Porém hoje, com Uma prova de amor...emudeci (não vou fazer metáforas com gêiseres ou cachoeiras).

Nele, uma linda menina chamada Kate luta contra um câncer, sua família luta contra esse câncer. Sua irmã Anna é concebida para salvá-la, mas quem as salva do amor de sua mãe? Esses encontros com o real a que estamos sujeitos, barram as palavras, pois o real é o impossível de ser simbolizado. Estou escrevendo pra ver se consigo dar um trato no efeito colateral que o filme provocou.

Me pergunto agora: que força é essa chamada amor materno? Estaria esse amor, ao lado das sublimações e da angústia (que provoca deslocamentos subjetivos), movimentando o planeta terra? Costumam dizer que a culpa é da mãe. Seriam elas então as culpadas pelo aquecimento global? Será que peguei o expresso Hellmann's ligth? Ok, é provável que eu tenha pego esse expresso. Os filhos costumam carregar nas costas os sonhos frustrados de seus pais: "se eu não consegui, meu filho conseguirá por mim". E os filhos insistem, e como insistem! Quantos cientistas, presidentes, escritores, atores, esportistas, não pensaram: “olha mãe, consegui! Essa é pra você”, quando fizeram uma descoberta, um gol no final da copa, ganharam uma eleição, o Nobel, o Oscar, etc.? Desejo de mãe é importante na constituição subjetiva de uma criança, mas ele também pode ser avassalador, por isso a importância da figura paterna. No filme a figura paterna está tão presente e forte quanto a materna. Kate queria ir à praia, e seu pai a levou contra a vontade de sua mãe. Anna entrou com um processo contra seus pais e depois de uma discussão com a mãe, seu pai a tira de casa por uma noite para conversarem.

Kate é convidada por seu namorado para irem juntos a um baile no hospital. Ela está debilitada pela quimio, só quer ficar bonita por uma noite, a noite do baile. Na esperada noite, Kate desce a escada da casa entre flash’s (cena clássica) e olhares da família. Ela está linda! Seu pai está no canto, observando, provavelmente, admirando embasbacado sua filha. Eis que ela encontra o olhar de seu pai. Kate se aproxima e pergunta a ele se ela está bonita, ao que quase sem palavras ele pronuncia alguma coisa e assente com o olhar, algo como: “sim filha, você é uma bela mulher”. Esse olhar é importante pra toda menina, o ser vista pelo pai como uma mulher. Pensei isso porque depois desse olhar, na mesma noite Kate faz “algumas coisas” com o namorado. Ela desejou outro homem que não o pai, e mais, se sentiu desejada por seu namorado.

Poderia escrever algo sobre o amor entre os irmãos Kate, Anna e Jesse, mas qualquer coisa que eu escreva vai ser insuficiente, e porque não dizer desnecessário. Nesse terreno minhas palavras caíram por terra como uma ancora...assim como as lágrimas.


p.s.: jacy...te amo, simples assim, como a oi.

15 de novembro de 2009

Hello stranger

Queria escrever algo sobre Closer, de longe um dos meus filmes favoritos. Gosto desse filme porque o que se passa com um cara que trabalha num jornal, uma stripper, uma fotógrafa e um médico, não está longe de acontecer comigo ou qualquer um. Closer pra mim é como um meio-termo entre a crueza típica de um filme francês e a doçura, leveza (e tédio) de um “filme compota” norte-americano.

Então hoje recebi um link do youtube com o vídeo do Damien Rice da música The Blower's Daughter. Acabou que a música aflorou as lembranças do filme e o clipe me fez matutar um bocado. A primeira coisa é que não só bato a cabeça na parede da linguagem, mas também a bato no espelho. E, sinceramente, não sei qual machuca mais.

Relembrando a primeira cena do filme pensei em relacionamentos cujo estopim são olhares. Closer não economiza em olhares profundos, demorados. Se fosse um esporte os quatros personagens praticariam algo como, saltos ornamentais nos globos oculares do outro. Literalmente, não conseguem tirar os olhos um do outro. É bem verdade que não conseguem tirar os olhos de si.

Bom, vou direto à cena clássica: Dan e Alice na mesma direção, sentidos opostos, se miram e sorriem (e a música ajuda a manter o clima... “I can't take my eyes off you...”). Parece que cada um visualizou um oásis no meio de Londres e lá se refugiaram, na imagem ideal de si projetada no outro, perfeita e total. Poço de júbilo que se atiram sem muito pensar. Nessa miragem se visualiza tudo, passado, presente e futuro. Esses momentos têm um quê de mágicos e irresistíveis (tão cinematográficos ou à la novela das oito global). Alors, penso: será a tal antecipação que Lacan fala no estádio do espelho? Dan e Alice se olham, sorriem, e ali me fez pensar no júbilo da criança quando descobre que a imagem no espelho é dela. Passa da imaturação orgânica, da angústia do corpo despedaçado, para uma antecipação de sua unidade corporal (Lacan, 1949). Imagem una dada pelo Outro, a qual a criança “veste”.

“O homem é espelho para o homem” afirma Merleau-Ponty (1963). Alice e Dan parecem duas crianças, cada um frente a um espelho, que nada mais é o outro, e nele vislumbram suas imagens ideais. Isso fascina, prende a atenção, canaliza libido, mas no momento que essa imagem ideal desfalece, se apaga ou aparece uma fissura...bom, já disse o que acontece no post de outubro. Mas não só isso surge, segundo Motta e Rivera (2005), quando a imagem vacila o sujeito advém, pois o sujeito não se reduz à imagem. O sujeito figura-se na ausência, é o eu que se figura na imagem.

O humano não é só imagem – eu –, mas também é falta-a-ser – sujeito – e só o fato de falarmos denota isso. Quanto às faltas de cada um, não se tem muito pra onde correr, não tem máscara que as cubra. Pensando sobre imagem, faltas, sujeitos, eus, outro filme que associei foi Alfie: o sedutor (também com Jude Law). Quando Alfie conhece Nikki, a personagem de Sienna Miller – seu milagre de Natal –, a convida para morar com ele. Eles têm tanto em comum, ela é meiga, engraçada, original, emocionante, cheia de surpresas...até que “uh-oh iceberg à frente”.

Bom, depois de certo tempo de convivência com sua musa, associa Nikki a estátua de uma deusa grega, linda, traços bem definidos, forma feminina perfeita, mas ao olhá-la de perto, notou que a bela estátua tem suas imperfeições, fissuras, suas falhas. Essa visão estragou tudo pra ele. Ao que concluiu que Nikki é uma “bela escultura danificada, de um jeito que você só percebe quando chega bem perto”. Sujeitos são assim, faltosos, e, diante das imperfeições do outro, penso que talvez o difícil mesmo seja continuar perto.

Antes de me jogar nos braços de Morpheus, último pensamento sobre Closer. Entre encontros, desencontros e reencontros, os enlaçamentos humanos mais parecem de arame farpado, por mais acalentadores que sejam é difícil se manter e/ou sair sem uma cicatriz. A propósito, sem titubear cito Freud, porque se é para falar de sofrimento humano, bebo na fonte de seu texto O mal-estar na civilização. Em 1930[1929] Freud elenca três fontes de sofrimento do homem: uma advém do corpo, outra das forças da natureza e uma terceira das relações com seus semelhantes. E o autor ressalta a terceira, relação com outros humanos, como fonte de mal-estar que pode causar mais infortúnios aos sujeitos. Relata Freud:

“O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro”.

Aperta de um lado, afrouxa do outro, sangra de um lado, libera a circulação do outro. Definitivamente, prefiro fitas de seda, até porque, uma “mumificação” a dois pode ser interessante. ;)

. na vitrola: quelqu'un m'a dit – carla bruni .

Referências:

FREUD, S. O mal-estar na civilização. E. S. B. Vol. XXI. Tradução de James Strachey. Rio de Janeiro: Imago, 1987. p. 72-171. (Obra original publicada em 1930[1929]).

LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica. In: ______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 96-103. (Obra originalmente publicada em 1949).

MERLEAU-PONTY, M. O olho e o espírito: seguido de A linguagem indireta e as vozes do silêncio e A dúvida de Cézanne. Tradução de Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Abril Cultural, 1975, 168 p. (Obra originalmente publicada em 1963).

MOTTA, L. A.; RIVERA T. O fascínio do ver e a angústia do olhar: sobre o corpo e a subjetividade. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. São Paulo, v. VIII, n. 4, p. 665-678, 2005.

7 de novembro de 2009

Uma carta de Freud a Marie Bonaparte

Grinzing, 13 de agosto de 1937.

Minha cara Marie:¹

Posso responder-lhe sem demora, pois tenho pouco a fazer. O “Moisés” II foi concluído anteontem, e as pequenas dores esquecemos melhor numa troca de idéias com amigos.

Para o escritor, a imortalidade significa que ele será amado por muitas pessoas desconhecidas. Mas eu sei que não chorarei sua morte. Pois você sobreviverá a mim por muitos anos e, espero, se consolará rapidamente, e me deixará seguir vivendo em sua memória amiga, a única espécie de imortalidade limitada que reconheço.

No momento em que nos perguntamos sobre o valor e o sentido da vida, estamos doentes, pois objetivamente tais coisas não existem. Ao fazê-lo, apenas admitimos possuir um quê de libido insatisfeita, a que algo mais deve ter acontecido, uma espécie de fermentação que conduz à tristeza e à depressão. Essa minha explicação não é grande coisa, certamente. Talvez porque eu mesmo seja muito pessimista. Anda em minha cabeça um advertisement que considero o mais ousado e bem-sucedido exemplo de propaganda americana:

Why live, if you can be buried for ten dollars?

(Por que viver, se você pode ser enterrado por dez dólares?)

Lün refugiou-se junto a mim, depois de um banho. Se a compreendo bem, manda que lhe agradeça a lembrança.

Topsy² já sabe que está sendo traduzida?

Escreva breve!

Afetuosamente,

Freud

___________________
1 Marie Bonaparte (1882-1962), princesa da Grécia, foi paciente, depois discípula e amiga de Freud. (N. O.)
2 Lün era uma cadela de Freud, da raça chow. Topsy, também uma cadela chow, pertencia a Marie Bonaparte; a última frase se refere ao trabalho que Marie Bonaparte escreveu sobre ela, que estava sendo traduzido por Freud e a filha Anna. (N. O.)

21 de outubro de 2009

Esdrú(Chulo)

Eu não dorme. Na última vez, eu dormiu 16 horas seguidas. Eu sente sede, do quê? Libido? Ou seria de quem? Pronome na primeira pessoa do singular e verbo na terceira porque estou pensando na segunda tópica freudiana e sua rede de intrigas e interesses.

Eu está a ruminar (em referência a Nietzsche) frases-navalhas. Ao que parece, eu tem estômago sensível. E é na borda de eu que a angústia vem dar o ar de sua (falta de) graça, com seus sinais que alfinetam tipo roupa implicante em festa de parente desconhecido. Pudera colocar a vassoura atrás da porta pra espantar quem te vem voduzar. Mas quando o que assusta vem de eu mesmo, o que se faz? Bom, eu vai pra análise...e não vai só, leva supereu e isso, claro.

Feliz mesmo, já disse Lacan, é a pulsão. Eu, às vezes, chuta o pau da barraca e toma porres de libido sublimada. Embriagado por si, tal qual Narciso, eu encontra certa felicidade no outro especular...ilusória, diga-se de passagem. Ok, eu confessa, bem que gosta dessas ilusões narcisicas, rs. Porém, basta uma fissura nessa imagem, por mínima que seja, e eu emite em alta freqüência seus alertas de angústia. Tsc, tsc, tsc...

Sabe, eu, mais parece saco vazio que para em pé, rodopia pela casa, digita pensamentos desconexos. Eu tolo, durma, não tema sonhos. São sonhos, coisas infantis...ainda assim deslocas e condensas, sem contar que amanhã recalcas. Eu, já pensou em tomar suco de maracujá? Chá de camomila? Supereu diria: melhor do que ficar juntando palavras e mais palavras esperando que saia alguma coisa que preste pra se ler, poupe quem abre esse blog dessas divagações esdrúxulas. Chulas mesmo! Para reforçar o coral, se isso falasse, no soluço, emendaria: cadê o objeto?!

Eu, isso e supereu, farinhas do mesmo saco. Todo mundo já pra cama!

. na vitrola: stereophonics - maybe tomorrow .

17 de agosto de 2009

Tatear no escuro...e tropeçar no nada

Lentamente, vou compreendendo o absurdo da tarefa de que incumbi. Tenho a sensação de tentar ir a algum lugar, como se eu soubesse o que quero dizer, mas quanto mais longe vou, mais seguro me sinto de que o caminho rumo ao meu objetivo não existe. Tenho de inventar a estrada a cada passo e isso significa que nunca posso ter certeza de onde me encontro. Uma sensação de andar em círculos, de sempre voltar atrás pelo mesmo caminho, de partir em várias direções ao mesmo tempo. E mesmo que eu consiga fazer algum progresso, não estou nem um pouco convencido de que vá me levar aonde penso estar indo. Só porque vagamos sem rumo no deserto não significa que exista uma terra prometida (p. 40-1).

A invenção da solidão - Paul Auster

9 de agosto de 2009

Entre o palato e a língua encontra-se um coração.

Hoje senti o coração na boca. Há quem o sinta na mão, na garganta, pulsando ou apertado no peito. Em qualquer outro lugar do corpo, até fora do corpo. No entanto, hoje, o meu estava na boca.

Quando o coração chega à boca, talvez possa significar que ele já tenha enfrentado um longo percurso, uma maratona. No ironman de uma relação, o pathos dá a largada e lá vai o coração, sedento, adrenalina nas alturas. Não vou descrever o delicioso e fatigante percurso, que entre bons e maus momentos, este e a chegada nunca são os mesmos para cada um. Mas quando o coração chega, finalmente, à boca, que não quer dizer o ponto final, ele filtra as palavras e as que conseguem a liberdade saem entrecortadas, exaustas. Algumas atropelam outras, saem mudas, outras berradas. Enfrentaram tanto para chegar à luz, ou escuridão. Talvez por isso tanta dificuldade para sair, elas sentem que a liberdade pode não passar de uma fatídica prisão. Seria sepulcro? Aqui jaz uma palavra, a palavra. Resta o luto.

Eis que me ocorre uma lembrança de duas semanas atrás. Uma senhora de uns 75 anos segurou minha mão num ponto de ônibus e disse que acabara de ver do outro lado da rua seu primeiro namorado. Jamais saberei o que ela disse, se foi coração na boca ou ricocheteando pelo corpo, ela apenas falou. Será que foi a condicional de um sentimento? Não sei. Sua mão estava gelada, mas aquelas palavras, endereçadas a mim, uma estranha, me aqueceram com distinta ternura. E dias depois eu pensei: num inverno chuvoso, edredom de léxicos esquenta mesmo. A depender de quem fala, e da imaginação de quem ouve, a temperatura pode subir. Se subir demais, algo evapora e se perde? Divagações...

Bom, o coração abrigou-se na boca, e cada palavra que pede licença para sair experimenta a liberdade que pode representar a salvação de um pathos náufrago. Mesmo com a hipertrofia do coração na região bucal, um verbo goteja pelas frestas e insiste em conjugar-se na primeira pessoa do presente do indicativo, censurando três ávidos pretéritos. Verbo daqueles que lateja e passa o dia assim, ora a pulsar na cadência, ora no descompasso. Verbo que inspira samba e que a ele seguem reticências ...

25 de julho de 2009

Mal entendido: entre uma fala e uma escuta.

"O filho é o sintoma do pai e o sintoma é a maneira como cada um gosta do seu inconsciente." Eu ouvi essa frase em 2006, ou seja, há três anos atrás. Só ouvi uma vez. E sinceramente, não passam alguns dias sem que ela me volte à cabeça, fica ali, circulando. E talvez essa nem seja mais a frase que havia sido dita, mas é a frase como eu a lembro. Afinal de contas, o que é que fica de um dito?

Para ilustrar, tomemos o último episódio da excelente série 'Som e Fúria' que, sim, quando a Globo quer, e quando se tem o Fernando Meirelles na direção, temos bons motivos para ficar acordados um pouco mais tarde esperando o fim do globo repórter. Enfim, no episódio final, na frase derradeira, a que encerra a cena, o zelador do teatro e um ator conversam sobre a vida. Um deles diz: "-A lembrança que ficou escrita vale mais que o objeto que foi perdido no passado". Eu e três amigas assitimos a mesma cena e ficamos muito tocados com aquela belíssima citação. Alguns, mais empolgados, disseram: "-Está vendo, a arte/o teatro inventou a psicanálise muito antes de Freud!". Logo após os letreiros, nos voltamos para discutir aquela tão arrebatadora frase. O fato é que - se é que o fato existe - não conseguimos chegar à conclusão alguma sobre o que havia sido dito. E pra falar a verdade, as aspas acima servem à minha versão da frase, pois foi este o dito que ficou nos meus ouvidos.

O que foi dito então? Volta a fita!! Mas a minissérie acabou...

Se toda relação com o mundo é uma relação de leitura, e se toda leitura implica um leitor, e portanto, uma interpretação, não menos semelhante o é nossa relação com a escuta. Estamos sempre escutando um texto - texto falado ao longo das nossas vidas. Ao mesmo tempo estamos constantemente lendo as falas. Lendo, escutando e interpretando. Ou escutando, lendo e interpretando. Talvez por isso os taxistas em Maceió dizem após enunciarem suas frases pelo rádio: "-Copiou?". Ou seja, copiaste o texto que lhe falei? Estás lendo o que estou te falando? Estás lendo minha fala?

Daí ficamos com algumas questões: O que se escuta do que se fala? Eu te disse isso, ou você escutou assim? O que é que nós realmente escutamos do outro? Quem fala, fala pra quem? E o que condiciona uma fala, é o falante ou nosso interlecutor, aquele a quem supomos uma escuta?

Nós quatro, perdidos numa sexta-feira à noite, e sem cervejas!, ouvimos quatro frases diferentes. Vieram as exclamações - consecutivas, espaçadas, intercaladas por letras apaixonadamente encadeadas: "-Não, mas ele disse isso!". Outro logo retrucava: "Impossível! Ele jamais usou tal palavra!". Cada um se punha a esbravejar sua versão do dito, pois, este, o original, ficou perdido.

Sei o quanto o conceito de subjetividade é uma coisa meio ultrapassada, moderna demais pro nosso gosto, algo fora de moda, preso nas dicotomias, sólido demais para nosso mundo líquido. Não se fala mais em subjetividade; isso já virou um lugar comum, objeto de museu epistemológico. Porém, vejo neste pequeno episódio tão cotidiano, a expressão de como nossa posição subjetiva (se é que tal coisa existe para além da minha fala!) se constitui numa relação com a linguagem, com os significantes, com aquilo que há quando há fala. Quando a fala supõe.

Em nosso fim de noite, restou-nos uma aposta: que iríamos pegar o DVD da minissérie e assitir o tal último capítulo, a tal última cena, a tal última frase, para ouvir "realmente" o que foi dito. Agora penso: será que isso não vai tirar toda a graça desse nosso mal-entendido? Mal que nos habita, mal tão necessário...

Por quase fim, cito aqui as estrofes finais de um soneto muito aguardado:

"Mas essa estória permanece inacabada,
Pois não se sabe se foi mesmo ele quem disse,
Ou se foi tão somente ela quem ouviu assim."

Quanto a mim, fico escrevendo pra tentar organizar tanta fala que me circula, tantos ditos; tentando lhes dar um ordenamento pela escrita, lhes enfiando dois pontos, ponto e vírgula, reticências até um ponto final.


Obs: Texto escrito a partir de muitas mãos e com muitas vozes.

7 de julho de 2009

Pathos que "twittam"

As agruras e delícias humanas também cabem em restritos 140 caracteres, até porque, há sempre um excesso de significado sobre o significante.

www.twitter.com/bicodepathos

26 de junho de 2009

Paus e pedras quebram tudo pela frente, mas palavras não machucam a gente.

“Solilóquios em ziguezague”, tropecei nessa expressão lendo J.-A. Miller e gostei, talvez o que escreva agora seja isso, alguns fragmentos de pensamentos bebuns que saem costurando as ruas da minha consciência, logo, me tiram o sono. O diabo continua solto por essa bandas e eu que não sou boba nem nada aproveito para cortejá-lo.

Passei os últimos meses ouvindo enunciados distraindo os ouvidos para a enunciação. Maldito pathos que mina todos os sentidos para o principal, as enunciações! Sim, elas, as enunciações! Explicação: o enunciado pode ser verdadeiro ou falso, já a enunciação desvela a posição subjetiva do sujeito. Difícil ouvir a enunciação, ainda mais quando se está na ciranda do pathos. Em plena associação de palavras lançadas com medo e desejo, ouvir certas palavras conforta, quando não, alimenta ilusões. Algumas agem como um sossega-leão que apaga em questão de segundos o rastro das incertezas que inquietam o coração. Parece que um anestesista as injetou ouvido adentro, nove...oit...apagou. Outras agem como um alucinógeno, já outras o efeito colateral é a excitação. Parênteses: é aí que concordo com a Martha Medeiros (2007) ao falar da “Atlântida” feminina, “não temos um ponto G, mas dois, um em cada lateral da cabeça, e não é preciso tirar nossa roupa para nos deixar em êxtase” (p. 9).

Voltando aos enunciados, como tomá-los como falsos? Quando alguém fala algo se subentende que se diz “falo a verdade”, até mesmo quando diz “eu minto”; como afirma Lacan (1969-70) no Seminário 17: Avesso da Psicanálise “a asserção se anuncia como verdade” (p. 62). Então, como localizar quem diz? Dada as circunstâncias, o timbre de voz, o horário, toda uma cadeia significante anterior. Começo a pensar na verdade do sujeito, verdade que está fora da lógica proposicional e só pode ser localizada no campo onde se enuncia (Lacan, 1969-70). Que verdade é essa? Uma marmelada (doce sugestivo) pra quem responder. Dou-lhe 1, 2, 3...Alguém disse desejo?!

E as questões atravessam as horas. Como localizar o sujeito em seus ditos quando se está “pathosado”? Como ser sensível as modalizações do dito quando o sujeito está, literalmente, surdo? Modalizações infinitas, sutis nuanças, no tom de voz, numa vírgula, no silêncio. Será que na paixão estamos fadados ao mal-entendido?

Enunciados, palavras vazias, ouvi-los como verdadeiros, de pessoas significantes, em momentos que correm contra o tempo: “fale agora, ou cale-se para sempre”, eis a armadilha, o calabouço das idealizações.

Último fragmento: no (pôr) fim, assim são as coisas (in)acabadas, acabam por dentro, num processo de despedaçamento das entranhas psíquicas. Irrisórias ilusões, dignas de escárnio, (in)significantes, significam por dentro, e como significam. É na escuridão que os clarões inconscientes me cegam.

p.s.: o título do post está na capa do livro Cantiga de Ninar de Chuck Palahniuk. E discordo caro autor, as palavras machucam e quebram tudo pela frente. O mesmo vale para o silêncio.

6 de junho de 2009

A instância da letra numa parede ou...ODiabom!


'Better the devil you know than the devil you don't'

Deus e o Diabo habitam Maceió. O Diabo e Deus disputam palmo a palmo as paredes dessa cidade, andam de mão em mão. Para aqueles cujo olhar passou despercebido, basta caminhar por aí; olhem novamente. O fato é que vejo Deus e o Diabo todos os dias; eles não me saem da cabeça: estão no caminho para casa e em pichações nos muros da cidade, estão escritos nesses grandes cadernos chamados 'paredes'.

Mas, calma! Isto aqui não se trata de mais um episódio de Constantine. A questão é que não sei se isso acontece em outras cidades ou se essa é uma disputa exclusivamente alagoana; porém, há algum tempo venho percebendo essas pichações em diferentes bairros da nossa cidade e logo me veio a pergunta: porque se precisa escrever o nome de Deus ou do Diabo numa parede? Seriam eles esse Outro que precisa se fazer representar? O que acontece nessa cidade para que essa espécie de dito precise se fazer escrito, assim, tão visivelmente?

Onde quero chegar com tudo isso? Como vocês vêem, tomei emprestado como título para esse post um famoso texto de Lacan intitulado 'A instância da letra no inconsciente'. Está lá nos 'Escritos'. Sobre ele operei uma pequena substituição: ao invés do inconsciente, a parede (por favor, ignorem óbvio dessa substituição). Não sei bem do que Lacan trata nesse texto, mas seu título sempre me fez imaginar muitas coisas...

Como muitos devem saber, as palavras, as letras, os nomes, enfim, os significantes possuem um peso significativo num tratamento psicanalítico. Ou talvez seja que ao experimentar uma análise descobrimos (se já não o havíamos feito antes) o peso que as palavras tem sobre nosso destino. Antes de nascermos já somos falados pela boca de outros, já existimos nas palavras, no discurso do outro: quer seja por meio de um nome ("Vais te chamar...Vitória", por exemplo), de um desejo ou de um lugar previamente construído, essa espécie de ninho de dizeres que nos aguarda antes de nosso nascimento. Eis aí os elementos fundamentais para a constituição do sujeito, este que nada mais é que o suposto; isto que a fala supõe.

Voltando ao nosso caderno gigante - as paredes -, na foto acima vocês vêem um Diabo transformado. Achei notável a habiliade da pessoa que se deu o trabalho de ir até a Fernandes Lima e ali, onde havia o diabo, pichou um 'm' e um sinal de exclamação, transformando-o por completo. Com uma letra, então, passou-se do Diabo para o Diabom! Essa pessoa certamente entende do que se trata numa análise, ou do que se trata uma vida, e por isso lhe dedico esse post! O diabom, portanto, está a uma letra de distância. O Diabo também. E não é exatamente assim com nosso inconsciente, estruturado como uma linguagem?

Parte 2

Deus existe? Não sei. Mas dele se fala, e do Diabo também; logos, ambos devem existir. Para iniciar minha conclusão, retomo a epígrafe desse post (se é que um post se presta a tal recurso estilístico!): Better the devil you know than the devil you don't. Além desta, existem muitas outras expressões com o Diabo na língua inglesa, mas que por hora iremos deixar de lado, como por exemplo: speaking of the devil...ou...between the devil and the deep blue see. Retomando a primeira, temos que "é melhor o diabo que conhecemos, do que o diabo que desconhecemos". Penso que se trata de algo semelhante na travessia do fantasma e no dia-a-dia dos nossos tão amados sintomas. Aqui lembro meu orientador, em uma de suas milhares de frases que me fisgaram: "o sintoma é a maneira como cada um gosta do seu inconsciente".

Ao tratar da transferência no seu texto 'Observações sobre o amor transferencial', Freud escreveu uma das mais belas metáforas que já li sobre o assunto. Nele, Freud diz: "Instigar a paciente a suprimir, renunciar ou sublimar seus instintos, no momento em que ela admitiu sua transferência erótica, seria, não uma maneira analítica de lidar com eles, mas uma maneira insensata. Seria exatamente como se, após invocar um espírito dos infernos, mediante astutos encantamentos, devêssemos mandá-lo de volta para baixo, sem lhe haver feito uma única pergunta." Esta pergunta, Lacan mais tarde a retoma com seu 'Che vuoi?', ou melhor dizendo: "que queres"? E de onde Lacan tirou essa? De um conto italiano escrito por Jacques Cazzote, intitulado: 'O Diabo amoroso'. Sinceramente, eu não consegueria pensar num título melhor para um livro qualquer que fosse, especialmente um que trate do desejo. Segundo Peter Souza Leite, tanto para Freud quanto para Lacan, o Diabo aparece como o próprio porta-voz do desejo.

Logo (urgente mesmo!), é preciso fazer falar esse Diabo que habita a todos nós, e não apenas as paredes da cidade, causando tanto incomodo ao ponto de que alguém se prontifique a lhe acrescentar uma letra; alguém este que algo quis fazer com esse Diabo que lhe incomoda - como eu nesse momento. Não sei se o mesmo aconteceria com o nome de Deus escrito nos muros. Pelo que vi, acho que não.

Àqueles que quiserem ver, o Diabom! os aguarda na parede da passarela do CEAGB, está lá, como na foto. Tire o dia e visite o Diabo. Se o Diabo incomodar, lembre-se que O Diabom! está a uma letra de distância.

21 de maio de 2009

Saint-homme pra quê?

Escritor fantasma? Moi? J'existe. Grafia bonita, eu elidido, tantas coisas as línguas nos ensinam. E qual melhor maneira para começar?

Vou entrando sem pedir muita licença, mas já acolhido, juntar-me-ei aos bicos perdidos, carentes, nocivos, aos pathos que não aprenderam a nadar. Escrever...eis negócio impreciso, porém, necessário. Pra quê? Lhe digo. Vamos no dizer não dito, reescrevendo Fernando Pessoa: Amarrar é preciso, fazer nó também! 

Deixo aqui meus agradecimentos e satisfação às minhas caras e boas ex-companheiras de curso e de debates assim-queria-ser-psicanalítico de horas inesperadas: no assento de ônibus, no banco do ICHCA, varanda de apartamento. Hélida e Jacy; Jacy, Hélida e eu, Rafael Caselli. Espero assim podermos triangular questões e devaneios, pois, a essa altura, vale qualquer coisa por uma sublimação! 

Penso nesse espaço como um divã noturno, de horas impróprias, porém precisas. As crises, todos sabem, escolhem muito bem as horas, são amigas do relógio, das repetições, e conhecem melhor o tempo do que nós o conhecemos. Pra quem não tem analista à meia-noite, interpretação delivery ou disk-escansão, aqui vai o espaço:    .

Olá a todos!

6 de maio de 2009

Kátharsis

Desatinada tomo a palavra. Sim, gostaria de bebê-la. Caso injetável, de preferência em doses cavalares. Se for efervescente, reage com a saliva. Se for sulfúrica, corroe traquéia e esôfago. Serena ou desesperada regurgitar léxicos pode ser uma saída, ou comumente, um beco sem saída.

Tantas são as palavras que fazem reverberar. Então me lembro de algumas que desencadeiam torrentes de arrepio a percorrer cada baliza anatômica. Eis a linguagem da pele que não mente.

Fonemas que hipnotizam, tal como sua voz, uma sinfonia rasgada que provoca frenesi e insônia. Fecho os olhos e logo o eco do seu toque, suavemente, deixa um rastro de perdição e salvação. Assim, sigo um percurso dantesco ao deixar que tuas mãos explorem as trilhas íngremes do meu desejo. Balé que coreografa paixão, exaure e não sacia. Com um olhar, o rastilho é acesso e o apetite se alastra novamente, transbordando as beiras do querer e requerer. Recomeça o ciclo vicioso do pathos, cuja adicção nos é inevitável.

Decifra uma quimera: na penumbra de uma alcova, escrevestes no meu corpo teus gemidos. Estonteante escrita, venenífera ou acidulante, me paralisou para então me solver. Num sussurro você se foi deixando-me em estado líquido. Prazer, saliva, suor, vertigem, lágrimas.

Hélida Xavier

31 de março de 2009

Suco de pathos


A alma fez-se liquidificador. Sua hélice afiada tritura o pathos, tornando-o líquido de propriedades indeléveis. O copo está sem tampa e é pathos para todos os lados do meu ser. Que sujeira! Não preciso de copo para degustar essa amálgama, espalhada pelo corpo também se ingere.

Lançada ao corpo os poros se embebedam. Disseminada no corpo epiderme se anestesia. Borrifada no corpo se morre um pouco a cada suspiro. Deixa-se morrer? Sim, do contrário, por que viver?


(31/03/2009)


Imagem: http://ffffound.com/