1 de abril de 2013

Um instante com Maria



Pela escada rolante meu corpo imóvel se desloca em sua efêmera travessia. Anos de engrenagens sutis anteriores à minha existência ali trabalharam. Correm mãos, apoio minhas pernas em um de seus degraus ambulantes, fadados a repetir o mesmo caminho, num vai e vem em curto circuito. A escada rolante, em sua repetição, desconhece diferenças e ignora tudo aquilo que por ventura anima a cadência dos passos que lhes são oferecidos diariamente. A escada rolante, em sua inteligência subterrânea, me fazer descer, corpo abaixo, rumo à estação. Entrego-lhe meu corpo em pedaços e deixo meu quadril deslizar, encostando-o contra aquilo que em seu apurado maquinário insiste em se manter quieto, pois algo precisa permanecer para que tudo mais possa se movimentar.


Sem jamais saber quem vamos encontrar no contra-fluxo da escada que sobe, seguimos, em direção aos pequenos abismos chamados estações. Nós, seres humanos, gostamos de nos enfiar em buracos. Nos empenhamos em transitar por túneis e escavações escuras, sombrias, artificialmente iluminadas. Nós, seres apalavrados, não sabemos o que fazer com nossos buracos. Diante de tudo aquilo que nos faz ausência, passamos a vida tentando responder à pergunta: o que fazer com os buracos? Mind the gap, dizem alguns. Cada um responde à pergunta com seu próprio estilo.




Em um momento, vejo Maria. Nossos olhos se cruzam, e antes que eu possa perceber, ofereço-lhe as mãos e a minha voz. Sua escada sobe, a minha desce, não tenho muito tempo. Num aceno tímido, lhe digo: "Maria Rita Kehl". O Kehl de Maria parece escorregar de minha boca, caidiço: "Maria Rita Keehl", falo, à minha revelia, baixinho. Dou-me conta que acabo de dizer à Maria Rita Kehl seu próprio nome. Digo-o à Maria ou a mim mesmo? Por que digo ao outro seu próprio nome? Poderia ter lhe dito tantas outras coisas... mas foi o nome dela que falou em mim!, se antecipando furtivamente à minha capacidade de pensar o dito. Talvez tenha sentido a necessidade ligar a imagem à palavra, como alguém pego de surpresa precisa avisar aos outros: "Ali, Maria Rita Kehl". Dou-me conta, consequentemente, que os registros da imagem e da palavra caminham sempre em descompasso. Maria, dedicando-me um instante de seu olhar, sorri, acolhendo meus balbucios e segue, corpo acima, por caminhos que desconheço.