25 de julho de 2009

Mal entendido: entre uma fala e uma escuta.

"O filho é o sintoma do pai e o sintoma é a maneira como cada um gosta do seu inconsciente." Eu ouvi essa frase em 2006, ou seja, há três anos atrás. Só ouvi uma vez. E sinceramente, não passam alguns dias sem que ela me volte à cabeça, fica ali, circulando. E talvez essa nem seja mais a frase que havia sido dita, mas é a frase como eu a lembro. Afinal de contas, o que é que fica de um dito?

Para ilustrar, tomemos o último episódio da excelente série 'Som e Fúria' que, sim, quando a Globo quer, e quando se tem o Fernando Meirelles na direção, temos bons motivos para ficar acordados um pouco mais tarde esperando o fim do globo repórter. Enfim, no episódio final, na frase derradeira, a que encerra a cena, o zelador do teatro e um ator conversam sobre a vida. Um deles diz: "-A lembrança que ficou escrita vale mais que o objeto que foi perdido no passado". Eu e três amigas assitimos a mesma cena e ficamos muito tocados com aquela belíssima citação. Alguns, mais empolgados, disseram: "-Está vendo, a arte/o teatro inventou a psicanálise muito antes de Freud!". Logo após os letreiros, nos voltamos para discutir aquela tão arrebatadora frase. O fato é que - se é que o fato existe - não conseguimos chegar à conclusão alguma sobre o que havia sido dito. E pra falar a verdade, as aspas acima servem à minha versão da frase, pois foi este o dito que ficou nos meus ouvidos.

O que foi dito então? Volta a fita!! Mas a minissérie acabou...

Se toda relação com o mundo é uma relação de leitura, e se toda leitura implica um leitor, e portanto, uma interpretação, não menos semelhante o é nossa relação com a escuta. Estamos sempre escutando um texto - texto falado ao longo das nossas vidas. Ao mesmo tempo estamos constantemente lendo as falas. Lendo, escutando e interpretando. Ou escutando, lendo e interpretando. Talvez por isso os taxistas em Maceió dizem após enunciarem suas frases pelo rádio: "-Copiou?". Ou seja, copiaste o texto que lhe falei? Estás lendo o que estou te falando? Estás lendo minha fala?

Daí ficamos com algumas questões: O que se escuta do que se fala? Eu te disse isso, ou você escutou assim? O que é que nós realmente escutamos do outro? Quem fala, fala pra quem? E o que condiciona uma fala, é o falante ou nosso interlecutor, aquele a quem supomos uma escuta?

Nós quatro, perdidos numa sexta-feira à noite, e sem cervejas!, ouvimos quatro frases diferentes. Vieram as exclamações - consecutivas, espaçadas, intercaladas por letras apaixonadamente encadeadas: "-Não, mas ele disse isso!". Outro logo retrucava: "Impossível! Ele jamais usou tal palavra!". Cada um se punha a esbravejar sua versão do dito, pois, este, o original, ficou perdido.

Sei o quanto o conceito de subjetividade é uma coisa meio ultrapassada, moderna demais pro nosso gosto, algo fora de moda, preso nas dicotomias, sólido demais para nosso mundo líquido. Não se fala mais em subjetividade; isso já virou um lugar comum, objeto de museu epistemológico. Porém, vejo neste pequeno episódio tão cotidiano, a expressão de como nossa posição subjetiva (se é que tal coisa existe para além da minha fala!) se constitui numa relação com a linguagem, com os significantes, com aquilo que há quando há fala. Quando a fala supõe.

Em nosso fim de noite, restou-nos uma aposta: que iríamos pegar o DVD da minissérie e assitir o tal último capítulo, a tal última cena, a tal última frase, para ouvir "realmente" o que foi dito. Agora penso: será que isso não vai tirar toda a graça desse nosso mal-entendido? Mal que nos habita, mal tão necessário...

Por quase fim, cito aqui as estrofes finais de um soneto muito aguardado:

"Mas essa estória permanece inacabada,
Pois não se sabe se foi mesmo ele quem disse,
Ou se foi tão somente ela quem ouviu assim."

Quanto a mim, fico escrevendo pra tentar organizar tanta fala que me circula, tantos ditos; tentando lhes dar um ordenamento pela escrita, lhes enfiando dois pontos, ponto e vírgula, reticências até um ponto final.


Obs: Texto escrito a partir de muitas mãos e com muitas vozes.

2 comentários:

Lutch disse...

Pois é, Rafa! Um "significante representa um sujeito para outro significante" (frase célebre de Lacan). É nesta relação que o discurso se estrutura. Concordo com vc sobre sua indagação sobre a busca da frase "certa", mas a curiosidade ainda me cutuca! rsrs

Hélida Xavier disse...

O que é que fica de um dito? Fica o que ouvimos, o que queremos ouvir. Estava assistindo o eps de um seriado (In treatment) quando a personagem no começo da sessão disse que estava voltando (dps de mais de 20 anos que interrompeu a terapia) pq o terapeuta a devia. Ao final ele disse para ela voltar na próxima semana pq como ela afirmou, ele a devia. Então ela disse: "-não foi o que quis dizer, quero dizer que vc me deve um filho, Paul. É isso que me deve". Afinal o que ela quis dizer? Questões transferenciais à parte (ok, não tão à parte assim), ela disse uma coisa, com várias possibilidades e escuta, a depender de quem escuta. "A fala equivoca", tanto tempo ouvindo essa frase, por mais que falemos, mais enrolados ficamos. Ao menos foi isso que ouvi.

Perdi essa discussão, mas na sessão "reprise" estarei lá. ;)