28 de janeiro de 2010

Útero

Depois se virou, aproximou-se de Pedro Cantos e fez aquilo para que tinha vivido. Encolheu-se contra as costas dele, puxou os joelhos para perto do peito, juntou os pés até sentir as pernas perfeitamente alinhadas, as duas coxas suavemente unidas, os joelhos como duas xícaras em equilíbrio uma sobre a outra, os tornozelos separados por um vão: apertou um pouco os ombros e fez as mãos escorregarem, juntas para o meio das pernas. Olhou-se. Viu uma velha menina. Sorriu. Concha e animal.

Então pensou que, por mais incompreensível que seja a vida, provavelmente nós a cruzamos com o único desejo de retornar ao inferno que nos gerou, e de viver ali, ao lado de quem, uma vez, nos salvou daquele inferno. Tentou pensar de onde vinha aquela absurda fidelidade ao horror, mas descobriu não ter resposta. Compreendia somente que nada é mais forte do que o instinto de voltar para lá onde nos despedaçaram, e de repetir aquele instante por anos. Pensamos apenas que quem nos salvou uma vez pode depois nos salvar para sempre. Num longo inferno idêntico àquele de onde viemos. Mas inesperadamente clemente. E sem sangue. (p. 79-80)
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Sem sangue – Alessandro Baricco

2 comentários:

Rafael Caselli disse...

Muitas leituras, chéri? O que o útero e o livro da memória tem em comum? Por que esses dois textos? Vida e morte? O que ainda será e o que já foi? Fiquei pensando aqui...

=)

Hélida Xavier disse...

Hahahahaha, não associei nada Rafa. No entanto, deve ter uma ligação. Até então, são trechos de livros que gosto e limpando a estante os abri e reli, já que não escrevo nada, resolvi postar. Bom, essa carta do livro do Auster faz parte de minhas memórias, boas, diga-se de passagem, rs. Já o trecho do Baricco me faz pensar que não importa o tamanho do caminho, andamos para fechar o ciclo, voltar para o lugar de onde saímos, uma sepultura quente e escura. Sacas?